MP 966: Constitucional ou inconstitucional?

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Há em tramitação no Supremo Tribunal
Federal algumas ações diretas de inconstitucionalidade propostas contra a Medida
Provisória nº 966/2020.

Fundamentalmente são três os argumentos a
embasar as ações: a matéria não poderia ser veiculada por MP; violação da regra
constitucional prevista no art. 37, § 6º; e indeterminação de alguns de seus
dispositivos.

No que diz com a matéria, alega-se que não
estaria presente o requisito da urgência para a edição. Neste aspecto, o
requisito de urgência parece presente. A MP 966 foi editada para regular a responsabilização
de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da
covid-19.

Por força da pandemia de covid-19 o Congresso Nacional editou o Decreto Legislativo nº 06/2020, decretando estado de calamidade pública no país até 31 de dezembro de 2020. Mais do que situação de urgência, no que se relaciona com a pandemia tem-se situação de calamidade pública.

A alegação de que a MP 966 viola a norma
contida no art. 37, § 6º da Constituição de 1988 também não parece ter
fundamento. Referida norma dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público
e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos
danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

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Perceba-se que esta norma constitucional
preceitua que, enquanto o Estado responde objetivamente por danos causados a
terceiros, o agente público causador do dano responde subjetivamente, em sede
de regresso.

Atente-se para o disposto no art. 1º da MP
966: “os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas
civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela
prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de…”.

À toda vista, e neste ponto não parece
haver qualquer divergência, o erro grosseiro de que trata a medida provisória,
em verdade, é uma espécie de culpa, adjetivada pela sua gravidade. Com efeito,
embora a MP faça referência a “erro”, o erro grosseiro de que trata é uma
espécie de culpa qualificada pela intensidade da gravidade da conduta, que
engloba condutas negligentes, imperitas ou imprudentes de elevada gravidade.

A suposta inconstitucionalidade residiria
no fato de que a Constituição Federal, no aludido art. 37, § 6º não estabelecer
qualquer gradação ou intensidade de culpa para que ocorra a responsabilidade do
agente público. E a MP exatamente estabelece uma gradação ou fixa um grau de
intensidade de culpa, abaixo do qual, o agente público não responderá pessoalmente
pela conduta adotada.

Defende-se que a norma contida no art. 37,
§ 6º da CF somente tem aplicação para os casos que expressamente regula, quais
sejam, aqueles que aferem a responsabilidade dos agentes públicos em sede de
regresso. Vale dizer, apenas quando avaliados dolo e culpa em situações nas
quais o Estado foi condenado a reparar danos, de modo objetivo, por força de
conduta de agente público.

Em não se tratando a MP de norma a regular
casos envolvendo a responsabilidade objetiva estatal e o direito de regresso,
especificamente em relação a ela, não tem aplicação a norma constitucional.
Assim, o contraste com o art. 37, § 6º não revelaria qualquer
inconstitucionalidade da MP 966.

Por outro lado, ainda que se repute
aplicável nesta hipótese em exame, a norma do art. 37, § 6º da CF, parece não
haver inconstitucionalidade, porque a medida provisória trata de aferir a
responsabilidade pessoal dos agentes públicos sob o prisma da culpa, e
portanto, sob o prisma também da norma constitucional invocada.

O que faz a MP é tão somente estabelecer a
aplicação do princípio da proporcionalidade, de índole constitucional
implícita. Aliás, o encaminhamento normativo veiculado pela MP 966 pode, em
certo aspecto, ser deduzido diretamente do art. 37, § 6º da Constituição,
interpretado sob as luzes do princípio da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade em
sentido amplo, como ressalta J.J. Gomes Canotilho, é também conhecido por
princípio da proibição de excesso. Para o autor o princípio da
proporcionalidade se desdobra em (i) conformidade ou adequação de meios
– a medida adotada deve ser “apropriada para a prossecução dos fins
subjacentes”; (ii) necessidade – com prova de que, para a “obtenção de
determinados fins, não era possível adotar meio menos gravoso para o cidadão”;
e (iii) proporcionalidade em sentido estrito – “meios e fim são
colocados em equação mediante juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o
meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim” [1].

Nesta medida, parece claro que será sempre
proibido o excesso na aplicação da medida da culpa prevista no art. 37, § 6º da
CF. E a MP 966 parece apontar para o caminho da proporcionalidade
constitucional.

Por fim, de menor textura, o argumento de
que a MP é maculada por conceitos jurídicos indeterminados, que poderiam levar
à impunidade. Não se encontra, quer parecer, fundo constitucional para este
argumento. De qualquer sorte, a convivência com conceitos jurídicos
indeterminados é da índole do sistema normativo. É algo natural e mesmo
esperado que as normas contenham conceitos indeterminados.

As normas veiculadas por conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas abertas somente podem ser contrastadas ou avaliadas no plano concreto.

Surge neste plano, com vigor, o princípio da motivação. Em qualquer hipótese, como já ocorria antes da edição da MP 966, será preciso análise de caso concreto, para a comprovação efetiva de que a conduta de agente público se subsume à noção legal de erro grosseiro. O contraste concreto entre as disposições normativas e o real e efetivo motivo do ato, e de sua motivação, é que poderão levar a qualquer conclusão acerca da existência ou não de responsabilidade pessoal do agente – daí não se perceber qualquer fundamento constitucional para sustentar vício de constitucionalidade apenas porque a MP veicula conceitos jurídicos indeterminados.

Portanto, entende-se que a MP não padece
de vício de constitucionalidade em relação: (i) ao requisito da
urgência; (ii) ao contraste com o art. 37, § 6º da CF; ou (iii) à
indeterminação dos conceitos normativos que veicula.


[1] Direito Constitucional. 6ª ed.
Coimbra: Almedina, 1993, p. 382.

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