O chefe de um dos Poderes da República pode determinar que todas as contratações do órgão que ele preside serão realizadas apenas por meio de licitação?

Contratação diretaLicitação

No dia 22 de agosto, alguns jornais do País veicularam a notícia de que o Presidente do Senado anunciou que determinaria que todas as contratações de obras, serviços e compras do Senado Federal seriam feitas doravante, necessariamente, por meio de licitação, o que poderia conduzir à conclusão de que ele proibiria as contratações por dispensa e inexigibilidade, que têm previsão na Constituição Federal e nos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666/93. A declaração do Presidente do Senado precisa ser bem compreendida e interpretada, pois não parece que ele queira proibir tais hipóteses.

Evidentemente, não foi isso que ele deve ter dito, pois do contrário teríamos um seríssimo problema e uma gravíssima violação da ordem jurídica, seja ela de natureza constitucional ou mesmo ordinária. Certamente, o que o Presidente do Senado quis dizer foi outra coisa, até porque ele sabe, pela sua experiência pública, que não é possível generalizar a licitação como o único meio de seleção de propostas nas contratações públicas.

Ainda que o chefe de um dos Poderes da República desejasse, ele não poderia determinar a adoção generalizada da licitação para todos os casos, por uma razão bem simples: além de ser impossível, é inconstitucional e ilegal. A impossibilidade jurídica decorre de uma razão lógica: a licitação tem como pressuposto a ideia de tratamento isonômico, o que nem sempre é possível assegurar, exigindo que a licitação seja, diante da impossibilidade, necessariamente dispensada ou considerada inexigível.

Já registrei, no meu livro “O Processo de Contratação Pública – Fases, Etapas e Atos”, Zênite, 2012, p. 231, que a licitação não deve ser realizada quando:

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a) a isonomia não puder ser assegurada em razão de uma condição de exclusividade, tal como nas hipóteses do inc. I do art. 25 e do inc. X do art. 24 da Lei nº 8.666/93;

b) não for possível definir um critério objetivo para escolher o terceiro em razão das peculiaridades especiais que caracterizam o objeto e inviabilizam a competição jurídica, como nas hipóteses descritas no caput e nos incs. II e III do art. 25 e no inc. XIII, parte inicial, e no inc. XV do art. 24 da Lei nº 8.666/93;

c) não for possível o atendimento dos prazos relativos ao rito próprio da licitação em razão da urgência de atendimento da necessidade, a exemplo dos casos previstos nos incs. IV e V do art. 24 da Lei nº 8.666/93;

d) houver, na estrutura orgânica da Administração Pública, uma pessoa capaz e com disponibilidade para diretamente satisfazer a necessidade que motivou a contratação, tal como nas hipóteses previstas nos incs. VIII, XVI e XXIII do art. 24 da Lei nº 8.666/93;

e) a realização da licitação se revelar antieconômica em razão do encargo integral necessário à plena satisfação da necessidade da Administração, como nos casos dos incs. I, II do art. 24 da Lei nº 8.666/93;

f) a igualdade puder ser garantida a todos os interessados independentemente de processo competitivo, a exemplo do credenciamento, cujo fundamento é o caput do art. 25 da Lei nº 8.666/93;

g) a igualdade já tiver sido assegurada em regular processo competitivo, como nos incs. VII e XI do art. 24 da Lei nº 8.666/93;

h) a escolha do beneficiário do contrato for norteada por política que visa à inclusão social de classes ou grupos de pessoas em condição desfavorável ou de entidades que prestem serviços de interesse social, como descrito no inc. XIII e XX do art. 24 da Lei nº 8.666/93.

No entanto, ainda vigora entre nós a ideia de que a licitação é a regra, e a dispensa e inexigibilidade retratam apenas exceções à referida regra. Assim, o raciocínio simplista se assenta na noção de que contratar sem licitação é uma simples concessão que se faz em determinados casos, uma espécie de momento de extrema bondade do legislador para com o gestor público. É óbvio que não é isso.

A licitação deve ser feita sempre que o seu pressuposto lógico estiver presente, ou seja, sempre que for possível assegurar tratamento isonômico e não houver hipótese legal impondo expressamente o seu afastamento. Outra coisa que também precisa ser compreendida é que, em muitos casos, a dispensa não é uma faculdade, mas sim uma obrigação. O agente público não tem a liberdade de escolher, segundo uma preferência pessoal, se faz a dispensa, a inexigibilidade ou a licitação. Há um pressuposto fático e se ele estiver presente, a decisão do agente terá de se ajustar a ele, sob pena de violação da ordem normativa.

Da mesma forma, a inexigibilidade de licitação é obrigatória sempre que presente o seu pressuposto lógico, ou seja, a inviabilidade de competição, que, na sua essência, traduz a ideia de impossibilidade de serem definidos critérios objetivos de julgamento. Assim, em todos os casos em que não for possível definir, selecionar e julgar por critérios objetivos, a licitação não pode ser feita, pois é impossível garantir igualdade se o critério de escolha for, por exemplo, subjetivo. Aliás, o único lugar do universo onde essa lógica se altera é na Lei nº 12.232/10, que regula a licitação para serviços de publicidade.

É claro que podemos continuar acreditando que licitar é sempre fazer o certo, e contratar por dispensa ou inexigibilidade é fazer o duvidoso. Mas não foi essa a lógica que o legislador idealizou e utilizou na estruturação do regime jurídico da contratação pública. A lógica é outra e consiste em reconhecer que temos dois caminhos legais para chegar ao contrato e nenhum deles pode ser abandonado totalmente, sob pena de ilegalidade.

O princípio mais importante da contratação não é o da igualdade, como se afirma tradicionalmente, mas sim o da eficiência. É a eficiência que condiciona a igualdade, e não o contrário. Diante de inúmeras situações que a própria lei indica, para realizar o melhor negócio (o mais eficiente), o único jeito é não licitar; em outras, no entanto, é licitar.

Certamente, diante da necessidade de contratação de obras ou serviços para atender a uma situação urgente capaz de comprometer a segurança de pessoas, bens ou atividades, nenhuma autoridade pública, seja de qualquer esfera ou poder, determinará a realização de licitação, mas sim a contratação por dispensa, conforme exige a ordem jurídica. Se fizer a licitação, violará a ordem jurídica, ou seja, fará o que a lei proíbe. Portanto, nesse caso, não existe liberdade por parte da autoridade para decidir se fará ou não a dispensa, pois a única alternativa será deixar de licitar.

Lamentavelmente, ainda há muitas autoridades que não entenderam, de forma adequada, o conteúdo do inc. XXI do art. 37 da CF, principalmente a ressalva que consta na sua parte inicial.

A licitação não imuniza nem impede o desvio dos recursos públicos. Ao contrário, em muitos casos, ela tem sido utilizada como álibi pelos que desviaram os recursos, sob o argumento de que a licitação foi realizada. Esquecem eles que a licitação é um caminho que tanto conduz ao céu quanto ao inferno. Não é licitando sempre que se cumpre a ordem jurídica, mas sim licitando quando for o caso.

É preciso nunca esquecer que, na quase totalidade dos casos de desvio de recursos públicos, a licitação foi realizada e, aparentemente, tudo estava em ordem. Aliás, a primeira coisa que se fez no maior escândalo da história deste País (o mensalão) foi justamente a licitação, pois tanto a DNA quanto a SMP&B do publicitário Marcos Valério não foram contratadas por dispensa nem por inexigibilidade.

É fato que ainda há muito o que aprender sobre contratação pública e sobre emprego eficiente de recursos públicos, e esse aprendizado depende de saber quando a licitação deve ser feita e quando não deve.

Até o próximo post.

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