Qualificação econômico-financeira: é possível exigir, na mesma contratação, garantia de proposta, patrimônio líquido e capital social mínimo (Art. 31, § 2º, da Lei nº 8.666/93)?

Planejamento

A Lei nº 8.666/93 propõe uma série de medidas que podem ser adotadas pela Administração, no planejamento da contratação pública, na intenção de resguardar o regular andamento da sua fase externa bem como a boa e correta execução do futuro contrato.

A exigência de garantias é uma dessas medidas, previstas no art. 31, inciso III (garantia de proposta) e art. 56 (garantia de execução de contrato), ambos da Lei nº 8666/93. Os requisitos de habilitação também o são (arts. 27 a 31 da Lei nº 8.666/93).

Particularmente, entendo que é possível a Administração cumular a tomada de várias dessas medidas ofertadas pela legislação, na mesma contratação, desde que saiba distinguir a finalidade de cada uma e escolhê-las de acordo com a necessidade que visa resguardar.

Especificamente – e discordando do entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário – vejo como possível exigir dois requisitos de qualificação econômico-financeira, previstos no art. 31, §2º, da Lei nº 8.666/93, cumulativamente:  a garantia da proposta e a comprovação de patrimônio líquido ou capital social líquido mínimo.

Essa interpretação particular se dá a partir do estudo da essência e da finalidade de cada instituto previsto na Lei, deixando de lado a análise literal do texto legal. A análise essencialista de cada instituto demonstra que cada um deles tem finalidades específicas e diversas no processo de contratação e, portanto, não conflitantes. Ao contrário, quando conjuntamente exigidos preservam a Administração de coisas distintas.

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Note-se que a habilitação financeira tem o condão precípuo de avaliar se o pretenso contratado tem condições mínimas, sob o enfoque financeiro, de garantir a execução do contrato, vale dizer, se ele poderá suportar todos os custos que virão da execução do contrato. Para análise da saúde financeira das pretensas contratadas a Administração poderá exigir os requisitos postos no art. 31 da Lei nº 8.666/93. O § 2º, deste dispositivo, determina que a Administração poderá estabelecer, no instrumento convocatório da licitação[1], a exigência de capital mínimo ou de patrimônio líquido mínimo, ou ainda as garantias previstas no seu § 1º do art. 56, como dado objetivo de comprovação da qualificação econômico-financeira dos licitantes.

A partir da análise literal dessa redação, doutrina e jurisprudência entendem que não é possível cumular a exigência de capital social mínimo, patrimônio líquido e garantia de proposta. Como dito a título introdutório, discordo.

Vejamos. O patrimônio líquido é o valor contábil que representa a diferença entre ativo e passivo no balanço patrimonial de uma empresa. Em síntese, o patrimônio líquido nada mais é do que o valor contábil que sócios e/ou acionistas têm na empresa em um determinado momento, é o valor disponível para fazer a sociedade girar. Ele é um indicador da saúde financeira real e atual da empresa.

Já o capital social, do ponto de vista contábil, é parte do patrimônio líquido. Ele representa valores recebidos pela empresa dos sócios, ou por ela gerados e que foram formalmente incorporados ao Capital.

O patrimônio líquido é variável de acordo com o exercício da atividade da empresa. Já o capital social só poderá ser alterado mediante deliberação dos sócios, isto é, independe do exercício da atividade da empresa.

Portanto, percebe-se que do ponto de vista contábil o capital social e patrimônio líquido possuem finalidades distintas, porém, verifica-se, desde logo que, numa contratação pública, ambos têm a mesma função, qual seja, a de indiciar a qualidade das finanças e o patrimônio da empresa que será contratada.

Logo, tendo em vista que na contratação pública eles cumprem a mesma função, estes sim não devem ser exigidos cumulativamente. Aliás, em contratação pública, tendo em vista a finalidade desses institutos, o mais adequado é a exigência do patrimônio líquido, que representa a situação real da empresa, do ponto de vista econômico-financeiro.

Por outro lado, vejo que o mesmo raciocínio não se aplica à garantia da proposta, que na contratação pública, exerce papel totalmente diverso do capital social ou patrimônio líquido.

A garantia da proposta é uma exigência feita para fins de habilitação, com o condão de assegurar à Administração a lisura e a seriedade da proposta dos licitantes, bem como que estes a manterão firme até a celebração do contrato. Desta maneira, em caso de desistência do licitante vencedor, a garantia da proposta será atribuída à Administração.

Em verdade, a reversão do valor da garantia para a Administração  representa, nada mais, do que uma penalidade ao licitante desistente, por não honrar sua palavra.  É uma espécie de multa não contratual, pois exigível ainda na fase externa da contratação (geralmente a licitação).

Portanto, não se confunde a garantia da proposta, nem faz às vezes do patrimônio líquido nem do capital social da empresa e, mais que isso, sequer demonstra a boa saúde financeira da empresa. (Em verdade, ela só pode ser exigida a título de qualificação econômico-financeira, porque está estruturalmente inserida no dispositivo que assim trata, e será condição de participação para todos os licitantes.)

Em síntese, essas são basicamente as funções de cada um dos institutos aqui tratados – patrimônio líquido, capital social mínimo e garantia da proposta – num processo de contratação pública.

Com isso em mente, entendo que justificando a Administração, em razão do objeto licitado, que tem a necessidade de fazer com que o particular demonstre seu capital social ou comprove o valor do último patrimônio líquido apurado e, ainda, faça a garantia da sua proposta,  poderão ser exigidos dois requisitos (capital social ou patrimônio líquido + garantia de proposta), na mesma contratação, sem que isso afronte, essencialmente, a Lei. Cada um desses institutos exerce função distinta.

Sobre o assunto, em breve um artigo amplo e completo na Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC, da mesma autora.


[1] Muito embora  a Lei refira-se apenas a licitação, esse e todos os requisitos de habilitação poderão ser exigidos nas contratações diretas, de acordo com a necessidade a ser atendida e a solução a ser contratada.

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