Tradicionalmente, a adjudicação é definida pela doutrina como o ato pelo qual a autoridade competente atribui ao licitante vencedor o objeto da licitação. Sua natureza é constitutiva, isto é, por meio desse ato, a pessoa beneficiária incorpora ao seu patrimônio um direito que antes não tinha. De acordo com a visão tradicional, quando se diz que o objeto da licitação foi adjudicado para o vencedor, quer se dizer, na verdade, que ele passou a ser o beneficiário preferencial da contratação. Assim, o que se entende é que a adjudicação não faz nascer o contrato propriamente dito, mas apenas a mera expectativa de o vencedor poder vir a ser contratado. Dessa forma, a adjudicação produz os seguintes efeitos: a) coloca o adjudicatário em uma posição especial, pois cria para ele uma expectativa contratual; b) impede a contratação de terceiros para executar o objeto adjudicado, salvo no caso de recusa do próprio adjudicatário; e c) libera os demais licitantes dos compromissos assumidos. Essa é a síntese da visão tradicional e majoritária sobre a adjudicação, tanto da doutrina e do Judiciário quanto dos órgãos de controle.
Tenho entendimento diferente do que é adotado tradicionalmente em relação ao item “a”, acima, mas não em relação aos itens “b e c”.
Entendo que, com o ato de adjudicação, temos a constituição da própria relação contratual, isto é, o negócio jurídico que denominamos contrato, e não apenas a expectativa do vencedor do certame de poder vir a ser contratado caso a Administração decida firmar o negócio. Assim, a adjudicação é o ato por meio do qual nasce o contrato, não apenas a expectativa futura do contrato. Portanto, tenho defendido que a única expectativa que surge em decorrência da adjudicação é quanto ao início da execução, que ocorrerá por meio da ordem a ser emitida pela Administração.
Para os que adotam a linha tradicional, o raciocínio que estabeleço parece não fazer sentido, ou seja, é como se eu tivesse esquecido um detalhe fundamental: como é possível afirmar que a adjudicação faz nascer o contrato se ele ainda não foi firmado?
É exatamente nesse ponto que me aparto da visão tradicional, pois distingo claramente duas coisas: a) o contrato e b) o instrumento do contrato, ou, por assim dizer, o contrato (negócio) do termo de contrato (instrumento). Explicarei melhor abaixo qual raciocínio adotei para chegar até aqui.
O raciocínio é o seguinte:
Como o contrato é um acordo de vontades, é preciso identificar em que momento do processo de contratação ocorre tal acordo e como ele é formado. Não é difícil perceber que a vontade da Administração é integralmente manifestada no edital. Logo, o edital traduz a vontade da Administração na sua inteireza. Tal manifestação é escrita, pois o edital é materializado em um instrumento e assinado por agente competente da Administração e, se tudo isso não bastasse, é ainda publicado. Aliás, pela importância do ato de manifestação de vontade, a lógica conduz à conclusão de que é a autoridade superior que deve assinar o edital, e não outro agente (presidente da comissão ou pregoeiro, por exemplo), salvo situação de delegação. Portanto, com o edital, a Administração manifesta sua vontade. E só pode fazer isso quem tem competência ou poder para vincular a Administração contratualmente.
As propostas apresentadas pelos licitantes nada mais são do que manifestações de suas vontades. Depois da devida análise das propostas apresentadas, a Administração escolhe, de acordo com o critério definido, uma, que é aceita como a manifestação de vontade que faltava para concretizar o acordo.
Portanto, de um lado, temos o edital e, de outro, a proposta vencedora. Edital e proposta vencedora expressam a manifestação inequívoca do acordo de vontades. A adjudicação cumpre no processo justamente a função de constituir a relação contratual, ou seja, com ela nasce o contrato; o acordo de vontades que de que trata o parágrafo único do art. 2º da Lei nº 8.666/93.
Por outro lado, no entanto, reitera-se, na doutrina e na jurisprudência, que o adjudicatário tem apenas mera expectativa em relação ao contrato. Com isso, quer se dizer que ele poderá não vir a ser contratado. Esse é um equívoco a ser repensado, pois, com a adjudicação, o contrato se torna um negócio jurídico. O equívoco decorre do fato de não se perceber que a formação do contrato administrativo é distinta da do contrato privado. A confusão decorre essencialmente disso.
A Administração não precisa firmar mais nenhum contrato, pois ele já está firmado. O que a Administração pode é querer materializar, em um único instrumento, o contrato já concretizado e que resulta de dois instrumentos distintos (edital e proposta vencedora). Aliás, temos dito que a junção em um único instrumento do negócio que está firmado, com a adjudicação, em dois instrumentos distintos, cumpre apenas uma função meramente formal, e não material, ou seja, não serve para muito, salvo o aspecto de organização, isto é, torna mais fácil a compreensão do acordo, cujos fundamentos de validade são, conforme previsto no inc. XI do art. 55 da própria Lei nº 8.666/93, o edital e a proposta vencedora. Se o termo de contrato inovar, ou seja, fixar alguma condição que não resulte do edital ou da proposta vencedora, ela será nula ou significará, sob o ponto de vista jurídico, alteração contratual.
Portanto, estamos confundindo coisas distintas: o contrato com o instrumento de contrato; isso é inadmissível no atual estágio do conhecimento. Fazendo uma analogia, estamos confundindo a música com a partitura. Como dito, a única expectativa que pode surgir com a adjudicação é em relação ao início da execução do encargo, e nenhuma outra. E se houver outra, será em relação ao recebimento da remuneração (preço), após o cumprimento do encargo.
Com a adjudicação, o negócio (acordo) está firmado. É evidente que isso não impede a Administração de rescindi-lo, como poderia em qualquer outra situação, desde que haja motivo suficiente para justificar tal rescisão, operando-se todas as consequências previstas na ordem jurídica. É importante observar que falamos em rescisão, e não em revogação. Revoga-se o ato (decisão) e rescinde-se o negócio (contrato). Para rescindir um negócio jurídico firmado, não é preciso que haja um termo de contrato nos moldes do art. 62 da Lei nº 8.666/92, mas sim um contrato, que nasce com a adjudicação, não com o instrumento do contrato.
Em relação ao registro de preços, surgem dúvidas em razão da minha posição em face da visão tradicional.
A visão tradicional entende que a ata de registro de preços não é o instrumento de contrato, ou seja, ela tem natureza obrigacional, mas não é contrato. Para alguns, ela é um pré-contrato, um contrato preliminar ou um contrato normativo, mas, não é o próprio contrato de fornecimento ou de prestação de serviços. A ata formaliza um “acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas”, mas, segundo a doutrina majoritária, não é contrato, apesar de o parágrafo único do art. 2º da Lei nº 8.666/93 dizer que é sim contrato, mesmo que se dê a ele o nome de ata. Mas não pretendo discutir aqui argumento, que considero inadequado, de que a ata é pré-contrato, contrato preliminar ou contrato normativo, farei isso em outra oportunidade, pois estou escrevendo um post, não um artigo, apesar de ter a impressão de que, até concluir este texto, irei violar mais uma vez a fronteira entre uma coisa e outra.
Minha posição é a de que a ata de registro de preços é o próprio instrumento de contrato, e o que vem depois dela é apenas ordem de fornecimento ou prestação de serviços, sem ser necessário firmar o instrumento de contrato de que trata o art. 62 da Lei nº 8.666/93 a cada requisição feita, conforme ocorre atualmente. Assim, com a ata, nasce o contrato, não apenas mera expectativa contratual. No caso do registro de preços, no entanto, a expectativa que surge com a ata (contrato) é quanto ao surgimento da efetiva demanda, pois a ideia de registro de preços é exatamente essa. Isto é, se não houver a demanda, não haverá fornecimento, ainda que tenha sido firmado o contrato.
Além da natureza da ata, outra questão que o meu entendimento provoca é o de ter de explicar o seguinte: como é possível adjudicar, ao vencedor, o objeto se não há uma quantidade “precisa” definida? A dúvida existe porque a visão tradicional ensina que a adjudicação “é o ato por meio do qual se atribui ao vencedor o objeto”, o que é correto, e o sistema de contratação que não se opera por meio do registro de preços licita sempre uma quantidade “precisa”, a qual pode ser reduzida ou aumentada em até 25%, conforme todos sabemos.
A solução da questão é simples de ser resolvida, o que se atribui ao vencedor, no registro de preços, é o objeto licitado, não a quantidade que será contratada, pois esta dependerá da efetiva demanda, que é incerta. Se a demanda ocorrer, ou seja, se vier a se tornar certa, tem a Administração o dever (não a mera faculdade) de expedir a ordem de fornecimento ou de execução ao vencedor. O fato de a quantidade do objeto ser estimada e não “precisa” no momento da celebração da ata (contrato) em nada altera o entendimento de que no registro de preços deve haver adjudicação. Haverá adjudicação de um objeto, cuja quantidade é estimada, pois dependerá da efetiva demanda.
Assim, no meu modo de ver, todo o procedimento de contratação, pouco importa se é licitação, dispensa ou inexigibilidade, deve ter adjudicação, ainda que o nome possa ser outro (ratificação, por exemplo). Dito de outra forma, sempre que a Administração selecionar uma proposta em razão da sua pretensão contratual, será necessário que a autoridade competente, isto é, quem tenha poder para vincular contratualmente a Administração, pratique um ato de natureza constitutiva e declare a aceitação da proposta que foi escolhida pela comissão ou pregoeiro. Com esse ato, teremos o contrato, que, no registro de preços, será, no meu ponto de vista, formalizado ou instrumentalizado em um documento que o legislador denominou de ata.
Portanto, no registro de preços, é indispensável a adjudicação, tal como é em todo e qualquer procedimento de natureza contratual.
Quero reiterar que este é o meu peculiar entendimento. A doutrina majoritária, bem como o TCU e os demais órgãos de controle, pensam diferente, ou seja, entendem que: a) a ata não tem natureza de contrato de fornecimento ou prestação de serviços; b) não há adjudicação no registro de preços; c) com a ata, mesmo havendo efetiva demanda, a Administração não está obrigada a adquirir o que ajustou e consta da ata. Como é possível ver, tenho entendimento diferente em relação a esses três aspectos. Peço ao leitor apenas que não me queira mal por isso.
Até o próximo post.
5 Comentários
Antônio Sérgio Blasquez
Bom texto, mas há algum julgado ou doutrina no mesmo sentido do que o esposado?
Abs.
Araune C. A. Duarte da Silva
Obrigada pelo comentário Antônio. Cientes de algum julgado nesse sentido, comunicaremos.
Ricardo Braggio
Caro Renato Geraldo Mendes, discordo de sua interpretação do ato da adjudicação, e sigo o entendimento dos órgãos de controle e da doutrina majoritária, pelo simples motivo de que se o ato de adjudicar representasse o contrato (não o instrumento claro, mas a declaração das vontades) isso geraria DIREITOS e OBRIGAÇÕES às partes, o que conforme a Lei nº 8.666/93 e o Código Civil Brasileiro, SOMENTE ocorre na formalização do instrumento contratual.
Em analogia podemos invocar a imagem do concurso público, que também é uma manifestação de vontade entre partes (órgão público e candidato). Quando o candidato participante vê seu nome na lista de aprovados, seguindo a sua linha de entendimento, isso representaria, então, a ADJUDICAÇÃO do concurso e a nomeação e posse seriam mera instrumentalização da vontade das partes.
Porém, o Supremo Tribunal Federal, já se pronunciou sobre a matéria e no caso do concurso, a lista de aprovação gera APENAS expectativa de nomeação, somente com a NOMEAÇÃO (por analogia, instrumento contratual) é que o candidato passa a TER direito à posse e ao exercício e somente com a posse o candidato passa ter direitos e obrigações, nos termos da Lei nº 8.112/90.
Recentemente uma licitação realizada no meu órgão foi executada, o objeto foi adjudicado e o processo foi formalmente e publicamente homologado, porém, tudo foi ANULADO por ter ocorrido VÍCIO INSANÁVEL DE ILEGALIDADE.
Na seu entendimento, a licitante vencedora TERIA, então, direitos, pois a vontade das partes se manifestou com a adjudicação, o que, no caso concreto, seria o maior absurdo e não lograria qualquer direito em qualquer instância jurídica do país.
Assim sendo, entendo que a doutrina majoritária, bem como, os órgão de controle e a Advocacia Geral da União, seguem um entendimento correto quando dizem que a ADJUDICAÇÃO gera apenas expectativa de direito.
Em relação à Ata de Registro de Preços, o Decreto nº 7.892/2013, no Inciso VIII do Artigo 9º, informa que o Edital deverá conter, quando cabível, a MINUTA DE CONTRATO e no Inciso X a MINUTA DE ATA DE REGISTRO DE PREÇOS. Ora, se o legislador quisesse que a Ata de Registro de Preços funcionasse como verdadeiro termo de contrato, teria excluído a necessidade da minuta contratual, se o fez, entende o legislador que a Ata não é o instrumento hábil para efetuar a contratação, servindo essa última apenas para DIVULGAR os preços, quantidades, especificações, fornecedores registrados e condições de fornecimento, ou seja, apenas um ANÚNCIO público de bens/serviços e preços licitados.
E, parafraseando você mesmo, tenho entendimento diferente do seu, e não me leve mal por isso.
Forte Abraço
Francisca
Gostaria de tirar uma dúvida..
É possível utilizar uma licitação de obras de engenharia, já existente, para construir um prédio nos mesmos padrões???
Araune C. A. Duarte da Silva
Prezada Francisca,
Obrigada por acompanhar e participar do Blog da Zênite.
Em relação à possibilidade de aproveitamento de uma licitação já existente de obras de engenharia para construir um prédio nos mesmos padrões, o que se pode afirmar, de um modo geral, é que, se a necessidade que motiva essa nova contratação é idêntica a que motivou a licitação que se quer aproveitar, até é possível se utilizar, como modelo, por exemplo, do mesmo projeto básico, mesmo projeto executivo, do edital e eventualmente alguns outros documentos que especificaram o objeto que foi contratado. Entretanto, é preciso tomar a cautela de fazer a revisão e atualização desses documentos, de acordo com a necessidade atual bem como com o contexto presente. Ademais, devem ser realizadas novas pesquisas de preços, atualização do orçamento, a revisão dos projetos para verificar a necessidade de atualizações, bem como instruir o processo com novas autorizações e documentação financeira pertinente.
Em suma, o que se pode fazer é ter como modelo a mesma licitação.